terça-feira, 22 de janeiro de 2008

"Há sempre uma estrela no Natal"

"O PRIMEIRO NATAL EM PORTUGAL

É véspera de Natal. Mas não para Irina. Para ela só será Natal a 7 de Janeiro, quando as aulas tiverem recomeçado.
A mãe aproveita umas horas extra, na pastelaria, para preparar fornadas de bolos-reis.
O pai, antes de sair, marcou-lhe páginas de trabalhos de casa. É preciso, para poder acompanhar os colegas.
Folheando o dicionário, a pequena ucraniana procura as palavras portuguesas que há-de escrever em frente das que tão bem conhece.


Tudo diferente! Até o abecedário… Na escola, os outros fazem pouco dela e chamam-lhe “língua de trapos”. Que quererá isso dizer?
Vai à página 190, logo em seguida à 293. Era de calcular…
Tem, no entanto, orgulho em ser a melhor a matemática. Ninguém a bate em contas.
Evita aqueles olhos escuros que se fixam nela, uns curiosos, outros trocistas, outros indiferentes.
Sente-se como uma extraterrestre. Porque é que os pais a mandaram vir?
Sola-se no recreio, a um canto, tentando desvendar a algaraviada das conversas. Às vezes, o Afonso murmura-lhe ao ouvido um segredo:
-Pareces uma fada!
E foge logo a correr.


Que palavrão será “fada”? Nem vale a pena procurar no dicionário. Algumas palavras que lhe dizem nem sequer lá vêm.
Com lágrimas nos olhos, Irina vai agora à janela e vê as luzinhas acender e apagar nas árvores despidas. Por trás das paredes deslavadas das velhas casas, decerto se celebra a consoada. Como será?
Doze pratos se punham na mesa de festa no Natal da sua terra. Uma em memória de cada apóstolo.
É Natal em Portugal. Que interessa? A família está dispersa. A mãe a fazer bolos-reis que não vai provar porque para os ortodoxos é tempo de sacrifício e jejum. O pai lá anda, na construção civil. Como mais ninguém queria trabalhar na noite de 24, foi, sozinho, pintar um café que está a ser remodelado, ao fundo da rua. Os dois irmãos mais novos ficaram em Priluki, lá longe, com a avó.
Irina aquece a sopa e arranja uma sandes de queijo.
De repente, sente um grito abafado no andar de cima.
Algum assalto? Alguém que caiu? Não sentiu passos nem o baque de uma queda…
Com o coração a bater, põe-se a espreitar pelo óculo. Nada!
- Acudam! Acudam!
Mais ninguém se encontra no prédio. As lojas do rés-do-chão estão fechadas, os vizinhos do primeiro andar foram de férias. Por cima, na mansarda, mora uma rapariga nova, gorda, pálida.
Irina abalança-se a subir. A porta encontra-se apenas encostada e a miúda entra, a medo. Já ninguém grita. Um gemido fraco ecoa ao fundo do corredor.
Haverá feridos? Tem horror ao sangue. Por um momento pensa em voltar para trás. Mas prossegue, pé ante pé, até ao quarto."


Luísa Ducla Soares, "Há sempre uma estrela no Natal" (excerto)

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